sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Histórias de Mia Couto


O gato e o escuro


Vejam, meus filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história.
Pois ele nem sempre foi dessa cor.

Conta a mãe dele que, antes, tinha sido amarelo, às malhas e às pintas.
Todos lhe chamavam o Pintalgato.

Diz-se que ficou desta aparência, em totalidade negra, por motivo de um susto.
Vou aqui contar como aconteceu essa trespassagem de claro para escuro.
O caso, vos digo, não é nada claro.

Aconteceu assim:
o gatinho gostava de passear-se nessa linha onde o dia faz fronteira com a noite.
Faz de conta o pôr do Sol fosse um muro.
Faz mais de conta ainda os pés felpudos pisassem o poente.
A mãe se afligia e pedia:
- Nunca atravesse a luz para o lado de lá.

Essa era a aflição dela, que o seu menino passasse além do pôr de algum Sol. O filho dizia que sim, acenava consentindo.

Mas fingia obediência.

Porque o Pintalgato chegava ao poente e espreitava o lado de lá.
Namoriscando o proibido, seus olhos pirilampiscavam.

Certa vez, inspirou coragem e passou uma perna para o lado de lá, onde a noite se enrosca a dormir.

Foi ganhando mais confiança e, de cada vez, se adentrou um bocadinho.

Até que a metade completa dele já passara a fronteira, para além do limite.

Quando regressava de sua desobediência, olhou as patas dianteiras e se assustou.

Estavam pretas, mais que breu.

Escondeu-se num canto, mais enrolado que o pangolim.
Não queria ser visto em flagrante escuridão.

Mesmo assim, no dia seguinte, ele insistiu na brincadeira.
E passou mesmo todo inteiro para o lado de além da claridade.
À medida que avançava seu coração tiquetaqueava.
Temia o castigo. Fechou os olhos e andou assim, sobrancelhado, noite adentro. Andou, andou, atravessando a imensa noitidão.

Só quando desaguou na outra margem do tempo ele ousou despersianar os olhos. Olhou o corpo e viu que já nem a si se via. Que aconteceu? Virara cego?
Por que razão o mundo se embrulhava num pano preto?

Chorou.
Chorou.
E chorou.

Pensava que nunca mais regressaria ao seu original formato.
Foi então que ouviu uma voz dizendo:
- Não chore, gatinho.
- Quem é?
- Sou eu, o escuro. Eu é que devia chorar porque olho tudo e não vejo nada.

Sim, o escuro, coitado. Que vida a dele, sempre afastado da luz!
Não era de sentir pena? Por exemplo, ele se entristecia de não enxergar os lindos olhos do bichano. Nem os seus mesmo ele distinguia, olhos pretos em corpo negro. Nada, nem a cauda nem o arco tenso das costas. Nada sobrava de sua anterior gateza.
E o escuro, triste, desabou em lágrimas.

Estava-se naquele desfile de queixas quando se aproximou uma grande gata. Er a mãe do gato desobediente. O gatinho Pintalgato se arredou, receoso que a mãe lhe trouxesse um castigo. Mas a mãe estava ocupada em consolar o escuro. E lhe disse:
- Pois eu dou licença a teus olhos:
fiquem verdes, tão verdes que amarelos.

E os olhos do escuro de amarelaram. E se viram escorrer, enxofrinhas, duas lagriminhas amarelas em fundo preto.
O escuro ainda chorava:
- Sou feio. Não há quem goste de mim.
- Mentira, você é lindo. Tanto como os outros.
- Então porque não figuro nem no arco-íris?
- Você figura no meu arco-íris.
- Os meninos têm medo de mim. Todos têm medo do escuro.
- Os meninos não sabem que o escuro só existe é dentro de nós.
- Não entendo, Dona Gata.
- Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me entende?
- Não estou claro, Dona Gata.
- Não é você que me te medo. Somos nós que enchemos o escuro com nosso medos.

A mãe gata sorriu bondades, ronronou ternuras, esfregou carinho no corpo do escuro.
E foram carícias que ela lhe dedicou, muitas e tantas que o escuro adormeceu. Quando despertou viu que as suas costas estavam das cores todas da luz.
Metade do seu corpo brilhava, arco-iriscando. Afinal?
O espanto ainda o abraçava quando escutou a voz da gata grande:

- Você quer ser meu filho?

O escuro se encolheu, ataratonto.
Filho?
Mas ele nem chegava a ser coisa alguma, nem sequer antecoisa.
- Como posso ser seu filho se eu nem sou gato?
- E quem lhe disse que não é?
E o escuro sacudiu o corpo e sentiu a cauda, serpenteando o espaço. Esticou a perna e viu brilhar as unhas, disparadas como repentinas lâminas.
O Pintalgato até se arrepiou, vendo um irmão tão recente.

- Mas, mãe:
sou irmão disso aí?
- Duvida, Pintalgatito?
Pois vou-lhe provar que sou mãe dos dois.
Olhe bem para os meus olhos e verá.

Pintalgato fitou o fundo dos olhos da sua mãe, como se se debruçasse num poço escuro. De rompante, quase se derrubou, lhe surgiu como que um relâmpago atravessando a noite.

Pintalgato acordou, todo estremolhado, e viu que, afinal, tudo tinha sido um sonho. Chamou pela mãe. Ela se aproximou e ele notou seus olhos, viu uma estranheza nunca antes reparada. Quando olhava o escuro, a mãe ficava com os olhos pretos. Pareciam encheram de escuro. Como se engravidassem de breu, a abarrotar de pupilas.
Ante a luz, porém, seus olhos todos se amarelavam, claros e luminosos, salvo uma estreitinha fenda preta.

Então, o gatinho Pintalgato espreitou nessa fenda escura como se vislumbrasse o abismo.
Por detrás dessa fenda o que é que ele viu?
Adivinham?
Pois ele viu um gato preto, enroscado do outro lado do mundo.


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Raízes


Uma vez um homem deitou-se, todo, em cima da terra. A areia lhe
servia de almofada. Dormiu toda a manhã e quando se tentou levantar não
conseguiu. Queria mexer a cabeça: não foi capaz. Chamou pela mulher e
pediu-lhe ajuda.

- Veja o que me está a prender a cabeça.
A mulher espreitou por baixo da nuca do marido, puxou-lhe
levemente pela testa. Em vão. O homem não desgrudava do chão.
- Então, mulher? Estou amarrado?
- Não, marido, você criou raízes.
- Raízes?

Já se juntavam as vizinhanças. E cada um puxava sentença. O
homem, aborrecido, ordenou à esposa:
- Corta!
- Corta, o quê?
- Corta essa coisa das raízes ou lá o que é…
A esposa puxou da faca e lançou o primeiro golpe. Mas logo parou.
- Dói-lhe?
- Quase nem. Porquê me pergunta?
- É porque está sair sangue.
Já ela, desistida, arrumara o facão. Ele, esgotado, pediu que alguém
o destroncasse dali. Me ajudem, suplicou. Juntaram uns tantos, gentes da
terra. Aquilo era assunto de camponês. Começaram a escavar o chão, em
volta. Mas as raízes que saíam da cabeça desciam mais fundo que se podia
imaginar. Cavaram o tamanho de um homem e elas continuavam para o
fundo. Escavaram mais que as fundações de uma montanha e não se
vislumbrava o fim das radiculações.
- Me tirem daqui, gemia o homem, já noite.
Revezaram-se os homens, cada um com sua pá mais uma enxada.

Retiraram toneladas de chão, vazaram a fundura de um buraco que nunca
ninguém vira. E laborou-se semanas e meses. Mas as raízes não só não se
extinguiam como se ramificavam em mais redes e novas radículas. Até que
já um alguém, sabedor de planetas, disse:

- As raízes dessa cabeça dão a volta ao mundo.
E desistiram. Um por um se retiraram. A mulher, dia seguinte,
chamou os sábios. Que iria ela fazer para desprender o homem da inteira
terra? Pode-se tirar toda a terra, sacudir as remanascentes areias, disse
um. Mas um outro argumentou: assim teríamos que transmudar o planeta
todo inteiro, acumular um monte de terra do tamanho da terra. E o
enraizado, o que se faria dele e de todas suas raízes? Até que falou o mais
velho e disse:
- A cabeça dele tem que ser transferida.
E para onde, santos deuses? Se entreolharam todos, aguardando
pelo parecer do mais velho.
- Vamos plantar a cabeça dele lá!
E apontou para cima, para as celestiais alturas. Os outros devolveram
a estranheza. Que queria o velho dizer?
- Lá, na lua.
E foi assim que, por estreia, um homem passou a andar com a
cabeça na lua. Nesse dia nasceu o primeiro poeta.

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